sexta-feira, fevereiro 24, 2012

A natureza da besta.

Escrito durante a leitura d'O Retorno, de Dulce Maria Cardoso.

Eu devo ser um monstro.
Devo ser um monstro ignorante, é o que é.
Eu devo ser um ogre, como o outro,
Devo não ser daqui,
Devo ser de um exo-planeta qualquer
Que dista milhões de anos-trevas daqui.
Eu devo ser estúpido ou, pelo menos,
Surdo de inteligência.

Eu devo ser um monstro, sim,
Um alienígena que não pode ligar para casa,
Um exilado de lado nenhum,
Um retornado sem África.
Sim, sim, eu sou o gajo que no dia da independência de Angola ficou apátrida.
Eu que nunca estive em Angola, que até odeio Angola,
Que até detesto angolanos, não por serem pretos,
Mas por serem angolanos,
Fiquei desprovido de um país, nesse dia.

Devo ser um refugiado da Cidade de Deus;
Ninguém me ia querer lá, na cidade perfeita,
Espiritual, pan-utópica de Santo Agostinho.
Ou melhor: eu não me quero nessa cidade;
Porque sou eu que sou um monstro e não os outros
Santos como Santo Agostinho,
Que não são da mesma espécie que eu,
Que não são da mesma ordem do ser:
Eu sou de outra ordem. Sou esquisito,
Sou de alma disforme, sou de estranhar.

Eu devo ser um monstro daqueles que assustam as crianças,
Daqueles que se escondem nos armários das crianças
Ou debaixo da cama delas.
Eu devo ser daquele tipo de monstros
De que os guionistas de Hollywood parecem gostar,
Se bem que gostam tanto deles porque é tudo treta e ficção
- Na realidade ninguém gosta desses monstros e o que é mais,
Monstros como eu não gostam lá muito deles próprios,
Principalmente porque cheiram mal do karma;
Principalmente porque têm mau hálito no pensamento
E não levam jeito para os negócios.

Eu devo ser mesmo uma besta vinda directamente de um lugar remoto
Do espaço-tempo porque, para além de achar que não sou deste lugar,
Também suspeito que não sou deste tempo.
Não sou deste tempo dos maricas que adoptam crianças.
Não sou deste tempo das crianças que não se sabem comportar.
Não sou deste tempo em que mentir é o mesmo que dizer a verdade.
Não sou deste tempo em que o telejornal sabe a verdade absoluta
E não sou deste tempo em que os cientistas já desistiram da verdade absoluta
E não sou deste tempo em que já não tem piada anunciar a morte de Deus
(Como a piada que tinha Nietzsche)
E não sou deste tempo em que ninguém acredita em nada a não ser
Nos seus direitos adquiridos.
Como se o simples facto de nascer,
Como se o simples facto de existir
Fosse suficiente para ter direitos.
Como se o simples facto de ter um direito a um dado momento,
Seja prova de que esse direito vai permanecer eternamente a partir daí,
Divino e imutável,
Como se fosse evidente que no cosmos há uma lei
Que nega a mutação do pensamento político
E do circunstancialismo económico e do contexto social.

Eu devo ser um monstro porque aqui, agora, não me sinto em casa,
Não me sinto em paz,
Não sinto que sou daqui, do Porto
Como nunca senti que fosse daí, de Lisboa,
Como nunca senti que fosse de qualquer tempo ou lugar em especial.

Platão diria que eu devo ser algo,
Kant diria que eu tenho que ser algo, 
São Tomás de Aquino diria que eu acredito que sou algo
E o francês que não sabia o que estava a dizer
Diria que eu julgo que sou alguém porque penso nisso
E para cúmulo da idiotia, Aristóteles achava que eu seguramente existo
Só porque sou movimento, e logo, consequência de qualquer coisa
Que existiu antes de mim.
Ora merda.
Eu não sou nada, não devo ser nada, não tenho que ser nada,
Não tenho que acreditar que sou alguma coisa,
E nem por isso é o meu movimento escasso
A causa de consequências que me transcendem para que a vida faça sentido.
Não é preciso ser filósofo para perceber que a vida não faz sentido nenhum.
Pelo menos para mim, que sou um monstro,
Que sempre fui um monstro,
Que sempre serei um monstro,
O monstro.
Monstro.

Gosto desta palavra.