segunda-feira, setembro 21, 2009

A Síndrome do Infante.


Domingo, Junho 24, 2007


Não é por acaso que aquele que foi, muito provavelmente, o mais inteligente dos portugueses, tenha dedicado grande parte da sua vida a esgalhar um plano de fuga. Como o desditoso Henrique, todo o português que se preze tem o secreto ou aberto sonho de se evadir de Portugal. Sempre achámos e continuamos a achar que o sétimo céu se esconde num canto recôndito do mundo. Como a D. João II, inquieta-nos esta pequenez marginal, esta solidão perante o mar. Como Milton, sonhamos com a queda de Lúcifer, desde que Lúcifer não faça a desfeita de cair em território nacional. O paraíso perdido está algures do outro lado da fronteira. Ou do outro lado da praia. Devo advertir a audiência que este postal não encontra razões na wikipédia nem conta com argumentos google. A partir daqui falo só de experiência humana minha: conheço gente vária que viveu em áfrica e que nunca conseguiu recuperar à infâmia do regresso. Conheço gente outra que foi acampar para a escócia e inventar utopias hippies na catalunha, que se escapou para negócios complicados em moçambique, que foi trabalhar para frança, que foi vender vinho para angola, que foi estudar para os estados unidos, que foi ganhar dinheiro para a áfrica do sul. Conheço pessoas muitas que seguiram pelo ancestral êxodo de macau e que, retornados também, sonham e anseiam por voltar àquele bocadinho chinês de terra portuguesa (este caso é mesmo muito estranho). Conheço malta com família em sidney, newark, ontário, instambul, que trabalhou em roma, que viveu em liverpool, que desapareceu para o deserto a propósito de ir comprar tabaco (só um português poderia chegar a marrocos com o pretexto dos cigarros). Conheço por excesso pessoas da minha terra, do meu bairro, da minha vida que deram de fuga. Foram para madrid, foram para londres, foram para boston, foram por onde as estradas do mundo esquecem o seu destino. E o que não me falta de gente em trânsito é gente que foi para o brasil, claro. Mas também para a argentina. Para o chile. Para a venezuela(!). A diáspora é de tal forma o quinto império deste meu bom povo que de portugueses está o mundo repleto. A acontecer, num determinado momento, num qualquer lugar tirado à sorte pela lotaria dos deuses, um desastre grande ou um supremo momento de júbilo, estará lá - asseguro-vos - pelo menos um tuga por testemunha! Kuala lumpur, nairobi, cidade do méxico, genebra, copenhaga, cairo, kathmandu. Não interessa a toponimia, há-de por deus encontrar-se por lá um zé, um antónio, um francisco e, com toda a certeza, uma maria. A verdade é que o português não gosta de Portugal. É até alérgico: porque raio de amor à pátria vai o Vasco contra ventos e correntes, contra a lógica e o bom senso, inventar um caminho marítimo para a índia? Porque, convenhamos, devia já estar fartinho de Portugal. Como Eça de Queiroz (ele próprio um diplomata), os portugueses acham que o seu país é mal frequentado e doentio. Os que partem sentem-se melhor, os que ficam são condenados aos serviços públicos de saúde, o que também não é nada bom. Reparem: eu conheço portugueses que preferem morar em nova deli. Que defendem a gastronomia de manchester. Que movem influências por um emprego do outro lado do mundo, o mais distante que seja possível por cartografia, o mais antípoda que poderá permitir a ciência geográfica e a criatividade do emigrante. É preciso sair daqui. A todo o custo. Qualquer lugar obscuro e suspeito, qualquer bocado de terra infernal e selvagem, qualquer quimera de supermercado serve de combustível ao motor desta incontornável, permanente e obsessiva volição.
Um dia destes fico para aqui sózinho.

Monte Gordo Blur








sexta-feira, setembro 11, 2009

Shakespeare (Pai)

"John Shakespeare adormece à porta da taberna. Está bêbedo e tem o amiguinho de fora. Passam dois meninos de coro de Heicroft e atam-lhe uma fita encarnada. Quando John acorda e vê a fita diz para a pila: sabe deus por onde andaste ou o que fizeste, mas apraz-me que tenhas ganho o primeiro prémio."

O Falecido Senhor Shakespeare - Robert Nye

Velázquez e o mau feitio.



Na Primavera de 1650, Velázquez termina este fabuloso retrato de sua santidade Inocêncio X. O Papa, violento e colérico, que desprezava profundamente o género humano, está aqui inteirinho e transpira mau feitio por todo o lado. Talvez por se ver com tal rigor retratado, o soberano pontífice não fica muito satisfeito com a obra, queixando-se ao pintor que o trabalho estava "demasiado verdadeiro". Este desagrado perante a verdade, que vem sempre em demasia, ainda vive, como o fantasma de Inocêncio, no Vaticano dos nossos dias.

Mil desculpas.


Sexta-feira, Março 30, 2007


Paladino seguidor da triste doutrina em má hora inaugurada por João Paulo II, Tony Blair decidiu pedir desculpa retroactiva aos povos de Gaia pelos horrores esclavagistas do Império Britânico. Esta vergonha da história, que é, no fundo, uma ignorância da história (dos seus enquadramentos económicos e sociais, das suas texturas políticas e demográficas, dos seus contornos militares e étnicos) está muito em voga na Europa e é de uma cobardia franciscana que me irrita solenemente!
Irrita-me solenemente porque pedir desculpa por ter havido um império inglês (é disso que se trata) é simultaneamente vazio de sentido redentor e perigoso para a saúde da civilização. Até ao século XX (e se pensarmos na Bélgica colonial de Leopoldo podemos até incluir este século) é praticamente impensável construir um império sem escravos. Aliás, é praticamente impensável construir uma economia sem escravos. O esclavagismo foi, durante 90% do percurso político e económico da humanidade, um factor operacional penta-essencial, estratégico e - acima de tudo - simbólico.
Adoptando a cartilha de vistas curtas do Sr. Blair, uma imensa parte dos estados do planeta tinham que se desunhar em apologias redondas para atingirem este zen moral de trazer por casa: Putin ver-se-ia na obrigação categórica de pedir desculpa pelos gulags de Estaline; Angela Merkel teria que se consumir em preces pelos sucessivos pecadilhos que os alemães foram sucessivamente cometendo desde que um tal de Bismark se lembrou de unificar esta irrequieta nação de gente industriosa; os egípcios deveriam já retractar-se perante os egípcios e arrependerem-se muito das pirâmides, das maravilhas de Tebas e dos mistérios do Vale dos Reis, que obviamente não teriam sido possíveis se fosse necessário pagar salários aos trabalhadores e negociar com os sindicatos. Outrossim para os Gregos, gente esperta que fundou uma forma de vida baseada primeiramente na guerra - a primeira arte helénica - e cujo conteúdo ontológico deixaria simplesmente de fazer sentido se os exércitos vencidos não pudessem depois servir a custo zero, já que, como é sabido, ao guerreiro/poeta/filósofo não competia a limpeza das latrinas de Atenas, dos balneários de Tróia ou das casernas de Esparta. Neste muito especial e divertido caso, assistir-se-ia a um formal pedido de desculpas à humanidade por ter sido possível a Anaxágoras, Platão e Aristóteles a fundação do pensamento sistemático. A propósito, o Presidente da Câmara de Roma também tem muitas explicações a dar a todos os povos do Mediterrâneo e mais além. Sim, sim, ponha-se lá de joelhos V. Exa. por ter levantado a civilização à custa do chicote, da corrente, da galé, do circo máximo, da faxina doméstica e dos trabalhos forçados de variadíssimo género que aqui há dois mil anos o seu povo teve a infâmia de inventar. E mais digo: pela desagradável tradição de acorrentar e sacrificar infelizes de toda a espécie, Aztecas e Maias, Incas e derivados devem ser publicamente condenados pelos chefes de estado do Perú e da Bolívia, do México e da Guatemala, do Panamá e arredores. Toca a pedir penitência e a agradecer a libertação aos espanhóis, sendo que o Senhor Zapatero não escapa também de uma apresentação pública e universal de má consciência, apesar do nítido paradoxo. Já os chineses, bom deus, podiam passar anos e anos a desculpar-se que não se safavam facilmente da condenação de sacristia. Só pela existência daqueles bonecos da Terracota são catorze dúzias de pais nossos e trinta mil avé marias, if you please. Quanto aos árabes proponho apenas que comecem por apresentar todas as desculpas que conseguirem encontrar no código de Maomé às suas infelizes mulheres, tarefa que os ocuparia seguramente durante as próximas décadas, para santo alívio dos restantes tripulantes da grande barca do caos. Uma palavra ainda de censura para o comportamento inqualificável de zulus e tuaregues, núbios e númidas, sumérios e assírios, cartagineses e fenícios, godos, bretões, normandos e habsburgos, holandeses, franceses, polacos e suecos e austríacos e o raio que os parta que não mostraram nas suas aventuras e desventuras qualquer vestígio de consideração pela versão 2000.7 mega pack da carta sagrada do direitos humanos.
Seria conveniente além disso que se sujeitassem ao tribunal dos bons costumes diplomáticos os actuais descendentes ou responsáveis contemporâneos pelos actos desviados do Sétimo de Cavalaria e do exército Confederado. Dos califas e dos marajás. Dos corsários e dos vice-reis. Já agora: os macedónios têm que cumprir pena por causa de Alexandre o Grande. Não se pode admitir sem repulsa institucional que um exército conquistador do mundo conhecido em 350 A.C. utilizasse com descaramento bárbaro mão de obra de recrutamento compulsivo, privada de subsídio de férias. Quanto a Adriano: abaixo com ele. O senhor Maquievel? Um cínico. Francis Drake? Um pirata! De Carlos Magno é melhor nem falar - é um filha da puta - e no que a Jefferson diz respeito, sabemos bem que o sacana tinha escravos na cozinha.
É claro que podia prolongar esta lista de queixumes até ao ponto em que, acreditando em Borges, ela se escreveria sózinha, mas fico-me só por uma última nota para o consciencioso e solícito Engenheiro Sócrates: faça o favor de convocar com carácter de urgência uma sessão extraordinária da Assembleia das Nações Unidas, de forma a que possa justificar com a costumada solenidade e o usual sentido de estado, a baixa moral dos Descobrimentos!

segunda-feira, agosto 10, 2009

Saudação a Walt Whitman (até certo ponto).


Quarta-feira, Dezembro 27, 2006

Eia, Walt Whitman, grande jardineiro dos prados vermelhos da Guerra Civil Americana, indefectível secretário dos serviços de recrutamento, entusiasta dos cinquenta mil mortos em Gettysburgh, descomplexado publicitário da indústria das armas, tardio cheerleader das chacinas da Independência! Saúdo-te infame ajudante de campo que só chegaste a enfermeiro e saúdo os teus versos exultantes por tanta gente a morrer em nome dos teus ideais, dos teus ideais romanescos de adolescente que acredita no futuro! Dos teus ideais de cálamo que vencem sobre mil tiros de canhoaria afinada!
Ah, companheiro que entendes bem o insignificante valor da vida, que te encantas com os teus sonhos de uma democracia em papel de pauta, que envias - em alegres elegias - esses jovens todos da tua América sonhadora para a morte mais real do que tu alguma vez sonhaste. Do que tu alguma vez imaginaste nessa tua imaginação de Quixote, embrulhado em quimeras que valeram por todo uns bons milhões de mortos! Sim tu, bravíssimo poeta do jugo dos exércitos, incorrígivel trovador da morte na batalha, benévolo terrorista dos destinos dos outros, enquanto preparavas a tua imortalidade! Eia, grande cabrão entre os belzebus da literatura, arcanjo de todos o mais grego, de todos o grande elefante da poesia da guerra, Aníbal de chapéu de palha, Maquievel barbudo a cuspir o tabaco do Sul no escarradouro de Bull Run, Francis Drake de fato macaco a construir o caminho de ferro por onde vão entrar as indústrias do Norte; eia, miserável produto da estirpe divina, como a morte te inspira! Saúdo-te!

E saúdo-te também, Homero, imperador único na história universal do ódio, eia por Aquiles e a sua glória de sangue, eia por Ulisses e a sua astúcia de facínora! Urra pela beleza da guerra e pelos semi-deuses a quem não se permite um funeral! Urra pela arte militar e pela convenção estética do ataque e pela honra que conduz à vingança que leva à tragédia! Eia pelo herói predador, que há-de ser deus por ousadia! Sim, saúdo-te grande ferreiro da palavra espada, genial contador de histórias horríveis, com deuses crúeis e homens escravos dos piores destinos, há-de a tua glutonaria necrófaga ser perdurável sobre as eras! Há-de Heitor ser o general de todas as pelejas!

Saúdo-te Plutarco, velho amigo que criaste em Alexandre uma alma, que soubeste versar qualquer coisa para lá da armadura! Ah, notável agente cosmético da história dos horrores humanos, beneficiasse S. Jorge da tua prosápia e teria chegado a messias!

Saúdo-te outrossim, Camões do espadachim e das conquistas mais gloriosas que a vergonha dos escravos, que a crueldade dos capitães, que a ambição dos mercadores! Grande falo militaróide da história trágico marítima, inventor miliciano da língua portuguesa, saúdo-te, toxicodependente de sarilhos, gajo de porradas nas tascas e de duelos no Paço (rebelde com nódoas negras, que também levaste na cara), animal divino nessa meia cegueira dos teus versos vagas; contente de tantos dias de calabouço, de tantos anos de misérias és vaidoso ò grande diabo lusíada!

Saúdo-te ainda Lord Tenysson, por teres levantado da campa do esquecimento aqueles oitocentos desgraçados da Brigada Ligeira que foram ser barro para a tua olaria de rimas!

Saúdo-te também, Claude Mckay, que te insurgiste pronto-a-morrer no campo de batalha do teu delírio! Africano de Sunny Ville, jamaicano de Alabama, louco furioso dos sonetos if you must die, die hard! Ferve-te esse sangue de soldado em vinganças e hemorragias e fazes belos versos à cabidela! Saúdo-te!!

E sim, saúdo russos e chineses, prodigiosos estetas da guerra! Árabes e japoneses, senhores da mais bela e belicosa lírica que um momento zen de ódio imenso pode reclamar. Darth Vaders de todos os hinos,
Saúdo-vos!

E sim, saúdo-vos todos, velhos trovadores da contenda que é a natureza humana! Eu, que não sou de Esparta nem de caserna, nem grego nem troiano, saúdo-vos camaradas! Eu, que sou deste lado do tempo sem peleponesos, nem termópilas, sem batalhas dignas de um verso porque chegaram entretanto em directo para o jornal da noite, sem mitos e sem heróis porque a televisão estraga tudo com a merda da realidade por satélite; eu aqui, em Lisboa, 2007 Portugal Codex, que não sei nada de guerra, que não saberia segurar um espadim, que me borraria certamente inteirinho ao trovão da carga, como ao bramido da ofensiva, que sou um verdadeiro pacifista, no sentido mais profundamente quizilento da palavra - o europeu; saúdo-vos, bravos bandidos da literatura!!!

segunda-feira, agosto 03, 2009

Velazquez e o sacrifício.


Esta é a minha representação favorita de Cristo na cruz. Talvez inspirado pela viagem que, dois anos antes, terá feito a Itália - para admirar in loco os mestres do renascimento - Velazquez opta por um registo sóbrio embora de grande intensidade dramática, num trabalho despido de artifícios biblícos mas magnificamente ornamentado de espinhos e pregos e feridas e sangue e sofrimento. Cristo está aqui a sós com o seu destino, face a face com a morte, na noite profunda do sacrifício.
Nenhuma representação (e muito menos esta) faz justiça a este quadro. Está no Prado e só a textura e a diversidade mais que súbtil dos negros de fundo merece uma hora de pura contemplação. Depois de ter visto esta obra é impossível classificar Velazquez no âmbito do Barroco. O homem transcende escolas e maneirismos porque, não estando atrás nem à frente, está para além do tempo.
Acresce que o sacrifício de Cristo me parece um tema particularmente contemporâneo. Agora que uma certa civilização ocidental vive aparentemente esquecida (ou ignorante) de que não há glórias sem sacrifícios. De que é preciso morrer para salvar. De que é preciso retribuir em lágrimas as alegrias: lamentavelmente, não há almoços grátis na cadeia de fast food que é a história dos homens. E Cristo está aqui exposto e nú, está aqui profundamente humano, está aqui frágil e moribundo para o provar.

segunda-feira, julho 27, 2009


Quarta-feira, Novembro 29, 2006



Sobre as virtudes do dentífrico.

Imaginem a vida sem pasta de dentes. Imaginem um mundo ao tempo em que se lavava a boca com urina. Os sorrisos castanhos das damas aliviavam aos cavalheiros as permanentes dores da putrefacta e generalizada cárie dentária. Trocavam-se alvarvemente beijos fétidos e as artes da conversação dependiam sobretudo da técnica utilizada para evitar o fedor do interlocutor. Durante séculos e sobre séculos o perdigoto foi um agente tóxico, o escarro trazia as sete pragas do Egipto e a pastosa substância da ressaca ficava na boca dos homens, alegremente, pelo dia a fora. Foi assim até há pouco mais de 150 anos. Lavavam-se os dentes com raízes e mijo, com carvão e giz ou não se levavam os dentes de todo. Imaginem isto. E agradeçam aos deuses por William Colgate.

quinta-feira, julho 09, 2009


Sexta-feira, Outubro 28, 2005



“Escrevi a abertura da Gazza Ladra na véspera da noite de estreia, num sotão do Scala, onde fui fechado pelo director. Seja a presença do copista que espera ansioso pelo trabalho ou o choramingar do empresário que puxa pelos cabelos, nada potencia a inspiração como a necessidade. No meu tempo, todos os empresários de Itália chegavam carecas aos trinta anos.”

GIOACHINO ROSSINI, o mais conhecido e popular compositor da transição entre os séculos XVIII e o XIX - e entre o iluminismo e o romantismo - está hoje reduzido à categoria de autor menor. Ouve-se pouco, fala-se pouco dele, é ausente nas colectâneas para as massas e persona non grata nas recensões dos eruditos.
Tratando-se este lamentável facto de uma injustiça de séria gravidade epistemológica, não deixa de ser fácil de entender. O triunfo da escolástica germânica sobre a arte da ópera, que se iniciou fundamentalmente com a Flauta Mágica de Mozart, e ao qual o próprio Rossini assistiu, como contemporâneo de Beethoven e Wagner; e sobretudo a sua condição de performer de massas (a ópera não era um discurso de elites na Itália oitocentista), retiraram-lhe o devido quinhão na aritmética da eternidade.
A história da música dita Clássica é feita por Paleontólogos do Contraponto, arqueólogos da Harmonia e antropólogos do Dó Menor. Gente, enfim, que não consegue compreender a importância da música como alimento espiritual dos povos nem quer saber da força vital que flui no mainstream sócio-cultural da história. Para estas borolentas baratas de biblioteca, que vão ao Fidelio de cartola e cerimónias - solenes como quem nem gosta de música - é inimaginável a plateia de uma representação de La Pietra del Partagone, que vibra de sapateiros e chulos aos pulos, de prostitutas e proscritos aos gritos, de bêbados e bandidos aos gemidos, de gargalhadas e pateadas, de aplausos mal criados e assobios a fervilhar. Rossini não escrevia música para os deuses, nem para os reis, nem para os filósofos. Não estava preocupado com os caprichos dos príncipes nem com os gostos das cortes. Sabendo bem da alegria da música, o grande mestre da Ópera Buffa propunha intensidade, ritmo, eloquência e entertenimento, para todos.
Não que lhe faltassem os argumentos dos predestinados, não que lhe pulsasse débil a veia dos virtuosos. Rossini produzia música orquestral prodigiosa a um ritmo desenfreado: a partitura do Barbeiro de Sevilha saiu-lhe em 15 dias e, entre 1815 e 1823, o Mestre escreveu 20 das 40 óperas que compôs durante a sua vida, a maior parte das quais verdadeiras obras primordais do talento humano e, quase todas, escritas a bordo de uma carruagem, num quarto de hotel ou sobre a mesa de uma estalagem. Herdando a vocação cosmopolita dos seus pais, Rossini desmultiplicou-se em viagens, concertos e encomendas por toda a Europa, procurando conhecer pessoalmente todos os que admirava, dirigir todas as orquestras de renome, estrear em todas as salas míticas, levar a sua música a todos os que a soubessem apreciar.
Vítima frequente da má-língua, Rossini é acusado de plágios e repetições, fórmulas e pastiches, truques e tiques. Na verdade, não era raro transferir áreas e catavinas de uma ópera para outra. Mas, senhores, como é que julgam que foi possível a Bach compor uma cantata por semana, nos velhos e atarefados tempos de Leipzig?
E que raio fazia Haendel, quando lhe faltava o tempo para cumprir com as solicitações da freguesia?(Seja como for, nem toda a gente tem que ser deus como Mozart, que escrevia ópera italiana dentro dos canônes italianos e ópera alemã dentro dos canônes alemães, sem repetir uma oitava).
Conta-se que, apresentado a Beethoven - de quem era grande admirador - terá sido cumprimentado por este com alguma frieza, sendo congratulando pelo Barbeiro de Sevilha mas com a gentil recomendação de que não criasse Ópera Séria, para a qual "os italianos, por condição, não têm qualquer talento".
Humildemente, Rossini assentiu, agradeceu o conselho e, de uma forma geral, até o seguiu. Mas para mim, porém, La Gazza Ladra continua a ser uma obra bem mais inspirada, e de conteúdo onírico bem mais feliz, que qualquer uma das severas e punitivas partituras de todos os Wagners que andam para aí há que tempos a castigar a sensibilidade ocidental.



La Gazza Ladra - Abertura

terça-feira, junho 30, 2009

Joana Trama, ou a propriedade da culpa (singela homenagem ao falecido senhor Jackson)


Quarta-feira, Fevereiro 20, 2008

A próxima música celebra, ao meu desajeitado jeito, o vigésimo quinto aniversário da edição do álbum mais vendido na história - Thriller, de Michael Jackson.
Aqui há uns tempos decidi-me não a uma tradução de Billie Jean (missão impossível por causa do extremo pop dos versos e da sua métrica alucinada), mas à construção de uma versão em português. Como achei alguma piada ao resultado quis encontrar um registo sonoro de balada arrastada e trágica, que acompanhasse os versos num código inverso à orgia dançante do tema original. A minha pobre vocalização prosada, o protagonismo do piano e a percussão de registo orquestral acabaram por cumprir com a antítese desejada. É que sendo o personagem Jackson da ordem dos grandes nojentos, a sua arte sempre escapa (acontece isto com vários génios) e só a linha de baixo de Billie Jean merece uma vida de vénias: era óbvio que não valeria a pena tentar fazer qualquer coisa de parecido.
Apresento-vos, portanto, Joana Trama, grande grávida do mais temido dos equívocos.



Joana Trama - One :kubrik

Ela era do tipo miss malveira, bela fiteira
Eu disse tudo bem mas nem penses que eu sou o tal
que vai dançar e rodar pelo chão
Ela disse que eu sou o tal que vai dançar e rodar pelo chão

Disse que se chamava Joana Trama e fez um drama
p'ra todos verem que podem sonhar ser o tal
que vai dançar e rodar pelo chão

Sempre me disseram p’ra ter cuidado com o que faço
não andar por aí a destruir corações às miúdas
A minha mãe sempre me disse p’ra ter cuidado com quem amo
p’ra ter cuidado com o que faço, porque mentir é um embaraço

A joana não é minha amante
ela é que pensa que o culpado sou eu
mas o puto não é meu.
Ela diz que o pai sou eu, mas o filho não é meu

Dias e dias e a noite é bela com a lei do lado dela
Já não se atura a criatura cheia de cenas e planos
só porque dançámos e rodámos pelo chão
Por isso ouve meu irmão, pensa duas vezes nesta canção
(Pensa duas vezes)

Contou à outra que dançámos até às três, olhou de revés
e mostrou a foto: a outra passou-se porque o puto tem os meus olhos
Vais dançar e rodar pelo chão

Sempre me disseram p’ra ter cuidado com o que faço
não andar por aí a destruir corações às miúdas
Mas ela apareceu a meu lado toda doce e perfumada
isto aconteceu de madrugada e ela deu-me uma morada

A joana não é minha amante
ela é que pensa que eu sou um tal de romeu
mas o puto não é meu

A joana não é minha amante
ela é que pensa que o culpado sou eu
mas o puto não é meu

Ela diz que o pai sou eu, mas o filho não é meu

A joana não é minha amante
A joana não é minha amante
A joana não é minha amante
A joana não é minha amante

segunda-feira, junho 22, 2009

Ulisses Vs Aquiles


Domingo, Agosto 14, 2005

ESTE É GRANDE.

Gosto à brava deste aventureiro marinheiro. Casado com uma mulher nobre e fiel, sabe que pode partir para a viagem sem perigos de desonra. É esperto e é romântico (rara alquímica!). Gosto do Ulisses porque o homem não usa a cabeça só porque dá jeito ao elmo, tem presença de espírito e é assertivo e é pertinaz e resolve problemas e segue o seu caminho à procura não se sabe bem do quê. Isto, claro está, para além de estar sempre a querer regressar a casa (um gajo que percorre todo o mundo antigo para conseguir chegar a casa desperta-me uma ternura imensa). Gosto deveras deste construtor de barcos e de cavalos, deste engenheiro da aventura que - protegido por Atena, a Deusa dos Olhos Garços - se faz um herói como deve ser. E até mais que um mito grego, solidifica-se num deus católico e irlandês. Não é de se meter em brigas, mas vence a barbárie da violência, com violência se necessário for, com astúcia se proveito de superior qualidade lhe trouxer a inteligência. É corajoso mas não é parvo, e passa montes de tempo na proa, a perscrutar o horizonte mediterrânico, na senda da origem das coisas. Gosto dele.


ESTE É PEQUENO.

Não gosto nada deste guerreiro interesseiro. Não gosto deste gajo que faz birras na presença de reis, que é invejoso de escravos e, mais cruel que valente, mais mercenário que soldado, permanece um enormíssimo maricas (afinal, quem é que alguma vez morreu com uma seta enfiada no tornozelo?). Armado em parvo e armado aos cucos, amantiado com um primo imberbe (e péssimo esgrimista), esmagando exércitos com a sua magnífica Excalibur de calibre helénico 3000 AC, Aquiles é, mesmo assim, um frouxo. É um frouxo porque faz tudo pelas razões erradas. Até quando entrega a Príamo o corpo morto e violentado do seu filho, o cavaleiro não é nobre porque fica pequenino de remorsos. Depois de ter cavalgado as sete colinas de Tróia com o cadáver de Heitor de rojo pelo mato, insultando de tragédia e ignomínia a alma troiana, corrompendo rituais sagrados e retirando ao seu adversário a glória da morte em combate, Aquiles é seguramente o bandido palhaço que vai ter remorsos. Não gosto dele.

Sete dicas para combater a estupidez humana.

I - Nunca subestimes um estúpido. A estupidez é na verdade e lamentavelmente o grande motor do circo a que chamamos o mundo, e está na origem da maior parte dos mais catastróficos acidentes da história da humanidade. Se há um desastre, uma guerra, uma peste, uma praga, uma chacina, uma vergonha, uma desgraça qualquer, num dado momento do tempo, o evento tem grandes probabilidades de ser devido a um estúpido de merda, que não sabe o que está a fazer e isto leva-nos à segunda dica, que é:
II - Um estúpido nunca sabe o que está a fazer, pelo que deves retirar-lhe todas as competências. É triste e muito perigoso que as pessoas que não são estúpidas sejam preguiçosas ao ponto de atribuir tarefas aos estúpidos. De confiarem neles! Não se pode confiar no estúpido porque é impossível determinar quando é que ele vai fazer algo de estúpido, sendo certo que o fará no pior momento possível.
III - Não tenhas pena do estúpido. Um estúpido é um bruto e deve ser tratado com a barbaridade que merece. Um dos erros mais frequentes das pessoas que não são estúpidas é o de se apiedarem dos estúpidos. Acontece que os estúpidos são geralmente culpados da sua estupidez, porque ninguém pode nascer assim tão estúpido e além disso a maior parte dos seres humanos que sobrevivem à superfície deste planeta são da classe dos estúpidos e não podem os poucos que não o são conseguir misericórdia para tanta gente. Os que não são estúpidos estão demasiado ocupados a solucionar ou a ignorar os problemas que os estúpidos criam, pelo que, a propósito:
IV - Uma boa maneira de combater a estupidez é ignorar os estúpidos e as suas façanhas, a não ser que os estúpidos façam algo de tão estúpido que os que não são estúpidos sejam forçados a intervir.
V - Tem sempre em mente que a estupidez é imoral. Por norma, o estúpido é um moralista. Como o ignorante é arrogante da sua ignorância, o estúpido é orgulhoso da sua estupidez. Tem opiniões éticas e imagina que tem senso comum. O estúpido, quando for grande, quer ser juíz de comarca ou sacristão de paróquia. Acontece que um estúpido não tem legitimidade para tecer juízos morais nem mandato para avaliações de carácter, nem autoridade para posições éticas: não há nada mais imoral do que ser-se estúpido e assim,
VI - O estúpido deve sempre estar calado e, se possível, quieto. Nunca por nunca dês a oportunidade da palavra a um estúpido e, sendo que os estúpidos são geralmente uns seres que não sabem estar parados, tenta condicioná-lo a um perímetro-colete-de-forças. Se o estúpido fala, acabou-se a razão, se o estúpido tem rédea solta, o caos instala-se.
VII - O estúpido é avarento ou é ganancioso, não lhe dês troco. A cobiça, a inveja, a avarez e a ganância são traços personalísticos comuns aos estúpidos que são também, sem excepção, de uma mesquinhez teimosa e entediante. O melhor que tens a fazer é evitar dar esmola a um estúpido, porque ele vai logo pensar estupidamente que estás obrigado a dar-lhe esmola até ao fim dos tempos. Nunca lhe emprestes dinheiro, senão o estúpido pensa que tu não precisas da guita e nunca mais te devolve a quantia que com esforço reuniste para lhe emprestar. Outra coisa desaconselhável é entrares em negócios com estúpidos. Nunca vão perceber coisa alguma do negócio, mas vão querer ser sempre os primeiros a receber os dividendos. Mais a mais, um estúpido procura invariavelmente a glória de enganar alguém que não é tão estúpido como ele. Acautela-te e não dês gorjeta à estupidez.

quarta-feira, junho 17, 2009

Sobre o karma das Quinas.

Portugal é a nação mais antiga da Europa e, exceptuando dois ou três momentos breves na sua história interminável de vergonhas e lágrimas, de ignorância e miséria, Portugal é um projecto falhado.
Dou um exemplo: se Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz se levantassem da campa para dar às farpas um arranjo contemporâneo, não teriam para cima de uns poucos minutos de trabalho. Não seria preciso mudar mais que coroa por presidência. Os problemas e os atavismos e os imobilismos e a falta de imaginação e a ausência de coragem e a vulgaridade e a imbecilidade que reinavam há cento e vinte anos atrás, presidem agora, iguaizinhas.
A crítica feroz e gargalhante da Campanha Alegre adapta-se toda e inteira à vida política e literária e mediática e social do Século XXI português porque este é um país que não muda. Quando muito, repete-se.
O problema dos Descobrimentos, que também vem a propósito, foi substancialmente um problema de escala. O país de duzentas mil almas não tinha massa crítica e fôlego demográfico para uma coisa daquelas. Hoje, a primeira dificuldade da nação permanece essa mesma: continuamos a ser poucos e pequenos, continuamos a ser velhos, continuamos a ser pobres, marginais, insignificantes. O paradoxo aqui é que nenhum português nasce resignado à sua insignificância. Nenhum Português nasce para a marginalidade da sua geografia. Nenhum português nasce para ser um em nove milhões de reformados. Se Portugal fosse habitado por 60 milhões de navegadores, Portugal seria hoje a primeira nação do mundo.
Quando a esquizofrénica e decadente corte de D. João VI e Carlota Joaquina se lançou no Atlântico em pânico histérico por medos do mais doente, faminto e esfarrapado dos exércitos de Napoleão, contribuindo de forma imediata para o anúncio do fim do império e conspurcando as páginas da história com um dos mais cobardes e manhosos exemplos de liderança que podem ser ensinados às criancinhas de todo o mundo (a História de Portugal tem destas elevações), estava apenas a revelar um cancro de genoma muito lusitano: a patológica e crónica falta de qualidade dos seus líderes condena Portugal à infâmia e ao anedotário, desde que D. Afonso Henriques inventou o conceito de homem honrado que não cumpre tratados. Hoje em dia, não podemos estar mais atolados no lodo das lideranças desqualificadas. Em todas as áreas do poder político, associativo e económico é absolutamente deprimente a falta de qualidade moral e intelectual dos protagonistas. Ter um primeiro-ministro Sócrates é constrangedor como ter um rei Sebastião. Ter um chefe de estado saído da gasolineira de Boliqueime é aborrecido como ser súbdito de um descendente da Casa de Bragança. Não importa a sua origem humilde ou gloriosa, os líderes que temos tido são, por regra, um género de novos ricos da razão pura e uma espécie de mendigos da razão prática.
Ora, se Portugal é a nação mais antiga da Europa e, exceptuando dois ou três momentos breves na sua história interminável de infâmias e ridicularias, de erros e equívocos, Portugal é um projecto falhado; porque raio é que Portugal é a nação mais antiga da Europa, notável pelos seus poucos e breves momentos de excepção? Porque raio é que, contra tudo e contra todos - contra os traidores que o querem vender, contra os diplomatas que o querem casar, contra os políticos que o querem falir, contra os burocratas que o querem normalizar - permanece Portugal no mapa, cabeça armada sobre o abismo do Atlântico?
Falo por mim: eu não quero ser espanhol. Gosto até dos espanhóis, mas desculpem lá, gosto mais aqui do meu inferninho. Tem novecentos anos de chamas e eu gosto deste calor. É aqui que quero permanecer condenado.
Eu não quero ser angolano. Não tenho nada a ver com aquela gente; lamento muito, mas não gosto deles nem das metralhadoras deles e faz lá um clima muito desagradável. Não estou a ver Portugal a funcionar como colónia de um país onde as baratas entram dentro de casa a voar, pela janela.
Eu também não quero ser belga e nem é preciso explicar porquê. Ninguém quer ser belga. Nem os belgas.
Bom, e uma coisa é muito certa dentro da minha cabeça: eu não quero ser brasileiro, de chinelinhos na favela e pila pública no carnaval. Poupem-me.
Eu não quero ser chinês, por motivos óbvios: até o inferno lusitano dá mais qualidade de vida ao seu cidadão-alma-penada. Além disso, não consigo mesmo trabalhar a comida com aqueles pauzinhos fugidios.
Em resumo e por exclusão de partes: eu quero continuar a ser Português, apesar do que isso significa e pesa e dói. Não quero ser tomado por conta. Deixem estar sossegada a nação disfuncional que já o era há muitos séculos, quando nasceram as grandes nações de hoje. Nós portugueses só fazemos mal a nós próprios. E isso é mais do que muitos podem dizer.

quinta-feira, junho 04, 2009

O Cravo Bem Temperado ou como compor com a pauta toda.


Quinta-feira, Janeiro 20, 2005

"Não me preocupa a sensibilidade crítica dos mortais. A minha música destina-se aos ouvidos de Deus"
Johann Sebastian Bach

Da maneira que eu tenho de ver as coisas, só há dois períodos na história da música: as trevas da época Pré-"Cravo Bem Temperado” e a idade da luz que se lhe seguiu. Passo a explicar.
Em 1691 um musicólogo mais ou menos obscuro de Halberstadt, Andreas Werckmeister, publica um opúsculo no qual presenteia a humanidade com “as verdadeiras e claras instruções matemáticas” para afinar qualquer instrumento de teclas. Este revolucionário documento revelava aos músicos que era possível afinar o orgão de tal forma que este pudesse tocar, num dado momento, todas as notas. Simplesmente porque os tons e os meios tons não eram uniformes, até esta altura cada obra tinha que ser composta apenas num número limitado de notas, retirando ao compositor a possibilidade básica de escrever música fazendo recurso à integral diversidade da sua escala...
Subdividindo a oitava em doze meios-tons de rigorosa uniformidade, Werckmeister propunha uma solução user-friendly para que, de uma vez por todas, fosse possível escrever música em todos os tons.
Como sempre acontece na história das ideias, a tese iluminada de Werckmeister não encontrou receptividade imediata junto da comunidade musical europeia. Isto, até que, 30 anos mais tarde, um vanguardista do barroco percebesse que aquela era tão só a pedra filosofal da inventiva melódica.
Filho de músicos e musicólogos, amigo de construtores de orgãos, nascido e criado em plena oficina da música, Johann Sebastian Bach era, para além de tudo o resto, um muito competente mecânico. Uma bela manhã, devidamente inspirado pelas mais belas musas que já habitaram o Olimpo das artes, Johann colocou mãos à obra, afinou o seu cravo da forma equacionada por Werckmeister e começou a escrever exercícios de interpretação, levando a sua composição a um nível de complexidade cromática nunca antes experimentada. Concluídos em 1722, estes 48 prelúdios e fugas constituem uma obra de arte incomparável, não só pela mestria do contraponto e da delirante diversidade formal, mas porque usufruindo finalmente de uma liberdade técnica nunca antes imaginada, Bach deu-se a excessos de expressão estilística, justa-posições caleidoscópicas de estados de alma e contemplações poéticas que deixariam qualquer Baudelaire em pranto catatónico.
Não que a intenção de Bach fosse compor uma obra prima. Tratava-se antes de um trabalho com fins lúdicos e pedagócicos e o título não deixa equívocos: “O Cravo Bem Temperado, ou Prelúdios e Fugas em todos os tons e semi-tons, ambos com a Terceira Maior ou Dó, Ré, Mi e com a Terceira Menor ou Re, Mi e Fá. Para uso e prática de jovens músicos que desejam aprender, bem como para diversão daqueles já versados no estudo.”
Na verdade, Johann sempre achou este trabalho uma obra menor, de natureza meramente académica. Apesar da modéstia dos seus sucessos em vida, Bach sabia bem (como o sabem todos os eleitos) que o seu talento permaneceria pelos concertos da posteridade e pouco desejaria ver-se celebrado como um simples professor de contraponto.
Três séculos depois, é apenasmente considerado o mais genial compositor de sempre. E o Cravo Bem Temperado contribuiu, em boa parte, para a sua coroa de glória. Afinal, não fosse o engenho divino desta obra e toda a música que foi criada depois seria muito, mas mesmo muito diferente.


Glenn Gould - Bach, Well-Tempered Klavier II - No.1~12

quinta-feira, maio 28, 2009

Anti-telejornal | A impossibilidade do presente.

A laranja está segura na laranjeira ou está caída no laranjal.
Provérbio hindu citado por J. L. Borges em "A História da Eternidade".

quarta-feira, maio 27, 2009

Saudades do Almada


Segunda-feira, Outubro 25, 2004

BASTA PUM BASTA
Uma geração que consente ser informada pela Manuela Moura Guedes é uma geração que nunca o foi. É uma audiência d'indigentes, d'indignos e de cegos! É um tele-público de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo do zero!
Abaixo a geração!
Abaixo a Manuela!
Morra a Manuela, morra! Pim!
Uma geração com a Manuela a cavalo da moral é um burro impotente!
Uma geração com a Manuela à proa do prime time é uma canoa em seco!
A Manuela é uma cigana!
A Manuela é meio cigana!
A Manuela é um pau de virar tripas!
A Manuela saberá cantar, saberá parlamentar, saberá opinar, saberá desopinar, saberá desopilar, saberá disparatar, saberá tudo menos informar, que é a única coisa que teima em fazer!
A Manuela pesca tanto de jornalismo que até faz notícias com a Quinta das Celebridades!
A Manuela é uma habilidosa!
A Manuela veste-se mal!
A Manuela especula e inocula os concubinos!
A Manuela é Manuela!
A Manuela é Moura!
A Manuela É Guedes!
Morra a Manuela, morra! Pim!
Não é preciso ir prá TVI pra se ser pantomineira, basta ser-se pantomineira!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteadora, basta falar como a Manuela! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem éticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas, e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicada e usar baton e olhos espertos! Basta ser judas! Basta ser Guedes! Basta Ser Moura! Basta ser Manuela!
A Manuela é um tele-ponto dela própria!
A Manuela em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
A Manuela nua é horrorosa!
A Manuela cheira mal da boca!
A Manuela Moura Guedes é a minha impotência!
Morra a Manuela, morra! Pim!
A Manuela é o escárnio da consciência!
Se a Manuela é portuguesa eu quero ser espanhol.
A Manuela é a vergonha da televisão nacional!
A Manuela é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar a Manuela!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó da Manuela!
E ainda há quem duvide de que a Manuela não vale nada e não sabe nada e que nem é inteligente nem decente nem zero!
(...)
Continue a Dona Manuela a desinformar assim que há-de ganhar muito com o Share e há-de ver que ainda inspira um instalação em Serralves, uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional da "Caras" a favor dos oprimidos da Palestina, e o Parque das Descobertas mudado para Parque da Dra. Manuela Moura Guedes, e com festas da Cidade plos aniversários, e Contraceptivos em conta "Manuela" e pasta de dentes Manuela, e BigMac’s Manuela e um jogo de Consola Manuela Ataca à Dentada, e Prozac Manuela, e autoclismos Manuela e Manuela, Manuela, Manuela, Manuela... E Ice Tea Manuela - Light.
(...)
Portugal, que com senhoras e senhores assim conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra a Manuela, morra! Pim!

quarta-feira, maio 20, 2009

De vez em quando.

De vez em quando, nasce assim uma pessoa rara. O meu amigo Fernando Bandeira de Lima era uma pessoa muito rara. Um cavalheiro e um sábio. Um louco compulsivo dos automóveis - último dos cavalheiros-sábios da vida e das corridas. Magoa-me agora a gargalhada dele, que me fazia feliz. Magoa-me agora a sua eterna pose de buda tranquilo sobre o caos, na praia de Altura, entretendo-se seriamente com a reconfortante companhia de um policial da Europa-América. A educação, deuses, a educação deste homem, que me impressionava, que me ensinava, magoa-me agora. Consigo ser verdadeiro o suficiente para dizer com precisão científica que já não nascem pessoas especiais assim e, se nascem ainda por singularidade cósmica, já não têm a educação do meu amigo. Já não têm a arte da cordialidade, a generosa bonomia, o saber estar e saber viver: uma britânica e brilhante paz de espírito, que agora me magoa e que me elevou outrora.
De vez em quando, apaga-se uma luz. E são os que permanecem vivos que ficam às escuras.

quinta-feira, maio 14, 2009

A febre Scalex Tric.





Quinta-feira, Julho 29, 2004
Lembro-me de mim adolescente petulante que lia Aldous Huxley entre duas corridas do campeonato de Fórmula 1 em carrinhos da Lego. Lembro-me de mim muito aflito quando a namorada entrava pelo quarto a dentro (nesses tempos, a minha casa oferecia a privacidade de um café central) e me encontrava empurrando carrinhos de um lado para o outro, repetidamente, concentradamente, até decidir, na última volta, quem venceria: Alain Prost ou Alan Jones. Lembro-me das ameaças do género: ou brincas ou namoras. Lembro-me de, a mais das vezes, preferir o ActionMan ou as profecias do Huxley. Lembro-me de desenhar, muito à pressa, o logotipo dos MotorHead na parede (as paredes do meu quarto eram aguarelas da puberdade), mesmo a tempo de terminar a batalha de Inglaterra com os kits da Revell, muito mal montados. Lembro-me desses stukas, desses spitfires e desses Messerschmitt como se fosse hoje que mergulhassem em ataque terminal pelos céus do escritório. Lembro-me de sair mais cedo das matinés dançantes no Rock Rendez-Vous e no Acapulco para ir brincar às escondidas com os Matchbox e os Corgytoys. Lembro-me de pensar com triste lucidez que já não tinha idade para inventar patifarias dignas de Butch Cassidy, para simular o palco sonoro dos disparos de Lone Ranger ou do relinchar de Silver, o seu nobre cavalo branco. Lembro-me de olhar para a minha pista (um oito miserável, mas com contador de voltas e tudo) e como quem arruma os brinquedos para nunca mais brincar, concluir com desesperada clarividência que já não tinha infância para construir, todas as tardes, um admirável mundo novo.

Quarta-feira, Julho 21, 2004
Lembro-me dos tempos paleolíticos em que era criança e construía longas rectas, só para atirar violentamente os carros contra a parede da varanda. Lembro-me de misturar o comboio eléctrico da Lego com a pista de automóveis, os soldadinhos da Timpo, os bonecos da Airfix, os castelos da Knex e o feltro do Subutteo. Lembro-me de não ter consciência de escala e preocupações de realismo. Lembro-me de me divertir à grande e a sós, no meu quarto de filho único, construindo e destruindo mais sonhos que apenas os meus (sim, destruindo também os sonhos dos outros). Todos contra todos, os meus brinquedos banhavam-se em gloriosa cosmogonia para meu deleite. Só para meu exclusivo prazer de deus ímpio, alegre e despreocupado, entornavam-se exércitos em rios de sangue, defrontavam-se grandes clubes do futebol europeu em chacinas de verde, amigavam-se mouros e peles vermelhas, cruzados e cowboys lutavam lado a lado contra o Afrik Corps, enquanto do quartel dos bombeiros da LegoVille saía uma brigada para apagar o incêndio que teria deflagrado algures, na sala de jantar.
Lembro-me de queimar - ligeiramente - um dedo no motor de um carrinho de pista. Lembro-me de pensar que os motores de carrinhos de pista que aquecem ao ponto de me queimar - ligeiramente - o dedo, são a coisa mais prodigiosa da criação toda.

Quinta-feira, Janeiro 06, 2005
Devo dizer que tenho 37 anos, 80 quilos, falta de cabelo e que sou um chato. Devo dizer que me pesam bem mais os 37 anos que propriamente os quilos/libras a mais no comércio da existência. Devo dizer outrossim que gosto pouco de infantilidades, imaturidades, ingenuidades e enfermidades do género que evidenciam certos adultos para os quais não tenho a mínima paciência.
Dito isto, tenho que confessar que sou uma criança. Sou uma criança porque ainda paro nas lojas de brinquedos e ainda faço aquele ar de puto guloso (a que a minha mãe não resistia) perante o banquete lúdico na paisagem. Sou uma criança porque ainda não sei de melhor programa para depois de um jantar de Sábado entre amigos que o magnífico privilégio de poder ir brincar com uma pista Scalextric a sério. E, por obra e graça dos deuses e do meu amigo Jaime Filipe, eu tenho uma. Tenho uma pista de carrinhos, senhores! Com automóveis lindíssimos do WRC, do GranTurismo de resistência e da DTM. Com boxes e mecânicos e fotógrafos e directores de corrida e espectadores. Com partida Les Mans, cronómetro aos centésimos, punhos Pro, base de relva simulada, escapatórias por todo o lado, pontes várias e cruzamentos perigosíssimos!
Psicólogos de todo o mundo rapidamente me enviariam para a Clínica dos Chalados Mor, quarto 33, gente sensata de todos os quadrantes genéticos dir-me-á: mas estás burro ou falta-te a bolha da razão? Estarão certos uns e outros. Persistirei porém no delírio: estou quase a comprar uma plataforma de condução (com banco desportivo) para curtir com realismo apurado o ColinMcrae 2005 que me proporcionam os magos da CodeMasters e os génios da Playstation. E é uma questão de tempo para ver se arranjo um Subutteo como deve ser. Com holofotes, bancadas, banco de suplentes e tudo!

quarta-feira, maio 13, 2009

Poema sem pés nem cabeça.

De vez em quando espalho-me no abismo.
De tempos a tempos ocorre o cisma ou o sismo
e dou a fortuna por perdida.
Volta não volta, vira-se a vida.

É um contra-ciclo, conjuntura-colisão,
em abreviatura é um palavrão
que não se entende;
sou o pretendente que ninguém pretende.

Dou graças ao diabo de não ser turista:
transito aflito e paraquedista
da chegada para a partida
e volta não volta, vira-se a vida.

terça-feira, maio 12, 2009

Anti-Telejornal | Tempo e eternidade.

"Naquela passagem da Eneida que pretende interrogar e definir a natureza do tempo, afirma-se que é indispensável conhecer previamente a eternidade. Essa advertência preliminar, tanto mais grave se a considerarmos sincera, parece aniquilar toda a esperança de nos entendermos com o homem que a escreveu. O tempo é um problema para nós, um terrível e exigente problema, talvez o mais vital da metafísica; a eternidade, um jogo ou uma fatigada esperança."

Jorge Luís Borges - História da Eternidade

As razões da felicidade ou a Oitava Sinfonia.





Sexta-feira, Julho 16, 2004

Quem ouve a Oitava Sinfonia de Beethoven chega facilmente à conclusão que a obra foi escrita por um homem feliz. Tchaikovsky - ele mesmo, tão egoísta em elogios - escreveu sobre esta obra prima o seguinte: "It is the last bright smile, the last response, given by the poet of human sorrow and hopeless despair to the voice of gladness".
Acontece porém que, à época da sua composição, o Mestre vivia, como sempre viveu, em fúria e dor e danação. Atirado para a casa do seu irmão Johann em Linz, com o propósito de curar uma feroz intoxicação alimentar, cedo descobre que o desgraçado se perde em delícias e volúpias com a criada de quarto. Beethoven desaprova o desagravo social com unhas e dentes: faz tudo o que lhe é possível para exterminar a relação bastarda, incluindo queixas à polícia e protestos no bispado.
Contrariando a austera vigência moral do seu irmão mais velho, Johann arranja maneira de casar com a criada da noite para o dia, e é por isso que rebenta a Oitava Sinfonia.

Cinco anos de um blog difícil.


Senhoras e cavalheiros, ilustres e raros e pacientes visitantes deste blog obscuro: no próximo mês de Julho, o Blogville faz cinco anos. Cinco anos de ódios e de raivas, de protestos histéricos e de gemidos de dor, de enxaquecas e de partes gagas, de folhetins e de banalidades, de silêncios incómodos e de ruídos inconvenientes, de confissões parvas e de recensões ilegíveis, de segredos e de generalidades, de gostos e de desgostos. Para festejar o triste acontecimento, e também para disfarçar a pouca vontade criadora que invade estes meus dias de uma Primavera hesitante, vou passar os próximos meses a recordar os altos e baixos deste diário de coisa nenhuma com que tenho a desvergonha de vos maçar. Obrigado pela vossa inesgotável paciência.

sábado, abril 25, 2009

Orgulho e preconceito.

Dois em cada três portugueses não vão votar para as Europeias e fazem eles senão bem. Hoje, no primeiro debate televisivo da campanha, a dra. Adelaide de Sousa decidiu abrir as hostilidades com esta perguntinha indigente: um sujeito que trabalha das nove às cinco e recebe o ordenado mínimo deve sentir-se orgulhoso por ser um cidadão europeu?

A pergunta é tão estúpida, é reveladora de uma desfaçatez moral de tal ordem, que nem se percebe. A dra. Adelaide de Sousa pretende saber se o candidato acha que o cidadão mal pago deve estar desgostoso do seu continente porque na América do Sul os ordenados são chorudos, ou porque na China o ordenado mínimo é de 2.000 euros por semana, ou porque na maior parte dos países africanos o custo de vida é largamente superado pelos rendimentos médios da população, ou o quê, precisamente? O cidadão que é mal pago deve ser zangado com a Europa porque nos outros continentes os cidadãos são melhor remunerados? Devem todos os europeus que ganham miseravelmente ir procurar emprego para a América?

A pergunta é de tal forma produto da mais infame leviandade, que brada aos céus. Esta senhora parece achar pertinente que o cidadão europeu deve ser mais ou menos orgulhoso da sua Europa em função do ordenado que ganha. Os Alemães, por exemplo, devem adorar a Europa. Os portugueses, devem odiá-la. Este materialismo é de cair para o lado.
Não interessa nada à dra. Adelaide de Sousa a história da Europa, os triunfos civilizacionais, científicos, políticos, filosóficos ou artísticos da Europa. O que é tudo isso, perante o ordenado mínimo do cidadão que vai trabalhar das nove às cinco? Das nove às cinco, caramba!

A pergunta é de tal modo perversa, que serve de evidência para o meu argumento antigo sobre a responsabilidade da abstenção: não são só os políticos que envenenam o debate e que distanciam os portugueses da União Europeia. Não são só os políticos que dão má imagem - e má fama - à política. O jornalismo em Portugal é um dos principais problemas da nação.

quarta-feira, abril 22, 2009

Anti-Telejornal | Ao sol poente

Nunca sei como é que se pode achar um poente triste.
Só se é por um poente não ser uma madrugada.
Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?


Alberto Caeeiro

segunda-feira, abril 20, 2009

Hoje é a minha conta bancária, amanhã é a minha roupa interior.

Não, não, não concordo nada com a violação do sigilo bancário. Não, não, não concordo nada que um borra botas qualquer que por acaso até chegou a chefe de loja no esquizofrénico franchise do Ministério das Finanças tenha poder para entrar pelos meus dinheiros adentro. Não, não, não acho que este desgraçado em particular tenha direito a isso, e muito menos direito a isso tem o Estado, no geral. Se o argumento para o total desrespeito pela privacidade, pela independência e pela dignidade do cidadão encontra justificação na moral fiscal eu digo: então o Estado que seja moral primeiro. O Estado que comece por pagar a tempo e horas, o Estado que comece a receber o IVA com base no recibo, o Estado que deixe de roubar o contribuinte com essa artimanha de feirante que é o pagamento por conta, o Estado que receba as queixas do contribuinte sem pedir garantias bancárias, o Estado que não penhore e venda à mais baixa licitação os bens de que tomou posse por erro burocrático, o Estado que não cobre juros superiores aos praticados pela banca, o Estado que não me leve 42% do rendimento, o Estado que tenha respeito pelo dinheiro que me tributa brutalmente e que não o gaste com devaneios, incompetências de bê-à-bá, banquetes oferecidos a assassinos e déspotas, subsídios para párias, blindagens nas limusinas, submarinos, estudos e contra-estudos para se fazer tudo mal na mesma, consultores para isto, para aquilo e por tudo e por nada, ordenados de funcionários públicos que não têm o que fazer, ordenados para amigos que precisam de ordenados; o Estado que ganhe consciência ética para além da ética do Estado cigano, do Estado manhoso, do Estado interesseiro, do Estado invejoso, do Estado voraz, do Estado corruptela da democracia, do Estado adversário da economia, do Estado fascista, mentiroso, disfuncional, do Estado carregado de filhos da puta e bandidos da pior espécie. O Estado que ganhe vergonha e deixe de ser o Estado que quer controlar tudo, ver tudo, normalizar tudo, o Estado que quer tomar conta, que quer possuir, nacionalizar, apropriar; o Estado que quer ser dono de tudo e de todos.

quinta-feira, abril 16, 2009

Droga Dura.


Lamento, mas não estou para ninguém. No entretanto, fica um bom conselho: se puderem, viciem-se nisto.

sexta-feira, abril 03, 2009

REMIXVILLE | Track#18

Quanto mais anos somo, mas aprecio o pop paleolítico do Rei da Grande Popa. O homem tinha talento e só foi pena ter nascido tão bonitinho. Em honra do meloso Elvis, cabe nesta rubrica Paul Oakenfoald e a sua eléctrica versão de Rubberneckin'. Se estão sentados numa cadeira confortável, levantem-se agora.


Anti-Telejornal | Desfolhada

Corpo de linho
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto.
Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto.
É milho-rei
milho vermelho
cravo de carne
bago de amor
filho de um rei
que sendo velho
volta a nascer
quando há calor.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Minha raiz de pinho verde
meu céu azul tocando a serra
oh minha água e minha sede
oh mar ao sul da minha terra.

É trigo loiro
é além tejo
o meu país
neste momento
o sol o queima
o vento o beija
seara louca em movimento.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Olhos de amêndoa
cisterna escura
onde se alpendra
a desventura.
Moira escondida
moira encantada
lenda perdida
lenda encontrada.
Oh minha terra
minha aventura
casca de noz
desamparada.
Oh minha terra
minha lonjura
por mim perdida
por mim achada.


Ary dos Santos

quinta-feira, abril 02, 2009

Sobre a Raiz Quádrupla do Princípio da Razão Suficiente


Jackson Pollock - Number 8, 1949 (detail)

"Viver é sofrer"
Arthur Schopenhauer

Viver é difícil, isto é verdade. A mim, nunca ninguém me disse que ia ser fácil, e mesmo assim acho que é difícil. Mesmo assim acho que não estava preparado para isto. Entrei para a vida como um jogador de ping pong entra numa partida de rugbi: empurrado, contrariado, assustado e andorinha tonta, sem saber para que lado é que vai a Primavera, de tanta lambada na tromba que chove por todo o lado.

Viver é difícil. Se calhar, morrer é mais fácil. Mas a facilidade eterna também deve ser muito complicada de aturar. De qualquer das maneiras, não tenho culpa de ter nascido, pelo que me parece uma boa ideia não ser culpado da minha morte. Assim, sempre me salvo de uma e de outra, o que não é nada fácil.

Viver é difícil, sim, a mais das vezes. A vida só é fácil para aqueles poucos que nasceram com o rabo virado para a lua ou casaram com a filha do patrão (que por acaso até é jeitosinha) ou não perceberam realmente nada de Schopenhauer. O tipo que nasceu com o rabo virado para a lua, casou com a filha do patrão (que por acaso até é jeitosinha) e não percebeu coisa alguma de Schopenhauer deve ser o gajo mais feliz do mundo. Mas, pensando bem, mesmo este sujeito deve ter dificuldades com a metafísica: se ergue templo à lua, vem o sogro chamar-lhe ingrato. Se diviniza a esposa amada, há-de Schopenhauer saltar da campa com a sua Arte de Lidar com as Mulheres em punho, pronto para lhe dar com ela umas cacetadas valentes. Se deifica a incompreensão da fenomenologia pós-kantiana, há-de ter muitas velas para acender. E não como aquelas de interruptor que agora vemos nas igrejas: viver é mais difícil e implica o uso de fósforos.

Sim é verdade, existir dói à brava e é muito complicado passar pelos espinhos das horas e os gumes dos dias sem fazer ferida. Pois é. Mas é a vida. E como não há certezas sobre o que havia antes e o que haverá depois se é que alguma coisa houve antes e haverá depois, o melhor é aguentá-la. Sempre é preferível habitar um apartamento projectado por Dante que passar os dias a tentar adivinhar as assoalhadas de uma moradia desenhada por Pollock, não acham?

Uma obra-prima do meu amigo Márcio Candoso.

Tentativa para pôr o caixão do Cesariny a virar ao contrário

Jazz sem baquetas tate
Samba nalgas fancaria

Lojas chinesas
As fraldas

Mortas
As melancolias

Salvé tortas pandemias
Cum grano salis defeca

Mel de macas associa
Às portas de um sonho tê

E depois, dás-me o quê?

Só noras, san-sin vigentes
Ciosas pústulas reflectas

Despistóides flurrangentes
Métalas onde se acaba

Amobira de rangentes
Palavra que tenho em falta

Só minha de plus tentantes
Ao cabo firme subsiste

Renta dos roios ausente
Uma sola substante

Só miro calcuntes frenes
Onde se afaga a maré

E ao pé, darás o quê?

Lunca trefisa herói
Em parte dada Pristina

Quando me tafo Hamurabi
Longe me perco em pó

Dó de mim, um só-li-dó
Rota de ré, faz de conta

Cage-me bem por enquanto
Sucinta-me em ió-ió

Refraseando um protótipo
Escanto-me na tirada

Final é só marinada
Estépula solicanto

E agora, vês o quê?

Rómula emarta as delfinhas
Eu só portenho Caifás

Defendótimo humanos
Mortos não tenho em cartaz

Lembro molta, lembro paz
Mostro mesmo insegurança

Às vezes conto criança
Que me afaga em desperada

Sou mijem, em deposta alfinha
Catro em famíusa escolheita

Dolha, dolha, que avizinha
A musca em xavier defrança

E ao final? Mostras lembranças?

domingo, março 22, 2009

A Obra ao Negro num instantinho.



I Don't Want To Get Over You

I don't wanna get over you
I guess I could take a sleeping pill
And sleep at will, and not have to go through what I go through
I guess I could take Prozac, right
And just smile all night at somebody new
Somebody not too bright
But sweet and kind
Who would try to get you off my mind
I could leave this agony behind
Which is just what I'd do, if I wanted to
But I don't wanna get over you
Cause I don't wanna get over love
I could listen to my therapist
Pretend you don't exist
And not have to dream of what I dream of
I could listen to all my friends
And go out again, and pretend it's enough
Or I could make a career of being blue
I could dress in black and read Camus
Smoke clove cigarettes and drink vermouth
Like I was 17, that would be a scream
But I don't wanna get over you

Magnetic Fields | 69 Love Songs

Às compras, no supermercado da moral.

O homem é a sua circunstância.
Ortega Y Gasset | El Hombre y la gente | 1956

Não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos.
Albert Camus | O Estado de Sítio | 1954

Religião, moral e filosofia são formas de decadência. O movimento contrário é a arte.
Nietzsche | Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro | 1886

Ninguém pode ser perfeitamente livre até que todos sejam livres; ninguém pode ser perfeitamente moral até que todos sejam morais, ninguém pode ser perfeitamente feliz até que todos sejam felizes. Herbert Spencer | O Indivíduo Contra o Estado | 1884

Que importa, realmente, onde e por quem o teu sexo se arrebita?
Marco António | Carta a César Octávio Augusto | 41 A.C.

sábado, março 21, 2009

Anti-Telejornal | Elogio da Primavera

Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente; porque ela era depois de amanhã.


Alberto Caeiro

sexta-feira, março 20, 2009

Rádio, Televisão e Propaganda.

Estou à vontadinha: toda a gente que me conhece ou que conhece este blog, mesmo que vagamente, sabe bem que não hei-de morrer de simpatias por um sindicalista. Concedo até que tenho alguma consideração pela pessoa do Doutor Carvalho da Silva, mas nenhuma pelo seu ideário. Acontece que hoje à noite tive a infelicidade de assistir a uns minutos da entrevista com que a dra. Judite de Sousa decidiu espancar o seu entrevistado e fiquei enojado. Subitamente, ao fim de 35 anos de Terceira República, vem a senhora dra. a descobrir a velha intimidade entre a CGTP e o Partido Comunista Português, para se escandalizar com isso. Para acusar deveras o Doutor Carvalho da Silva das mais viciosas dependências partidárias. Caramba, é preciso mesmo um Primeiro-Ministro poderoso para fazer a RTP virar à direita, por uma vez na sua triste existência. Nunca tinha visto um dirigente sindical ser tão maltratado em directo, por um jornalista da miserável televisão pública. De cada vez que o líder da CGTP desce a Avenida da Liberdade com mais umas centenas de milhar de almas, arrisca-se que se farta. Este nosso Primeiro é implacável e não leva escrúpulos para a guerra: aparece logo na RTP a dizer que o ofendem os populares com ditos e a Central Sindical com feitos. Que a Central Sindical é manipulada pelos partidos à esquerda do P.S., que está tudo embrulhado na grande e negra conspiração contra a sua inocente, impoluta, infalível e ilustre pessoa. Dito isto, e porque um inimigo do engº José Sócrates é um inimigo da RTP, salta a Dra. Judite de Sousa em follow on à indignação sumo-pontífice do grande chefe de S. Bento, que lhe paga o ordenado. No convite da Redacção ao dirigente sindical, lia-se certamente: Caro Doutor Carvalho da Silva, faça o obséquio de se dirigir aos estúdios da RTP para um ajuste de contas com o poder instituído. É verdadeiramente espantoso que o homem tenha aceite o repto.
E eu contribui, através do Ministério das Finanças, com qualquer coisa para a produção e emissão deste nojo. E tu também, gentil leitor.

A propósito: ninguém aplica umas quantas bengaladas no dr. Augusto Santos Silva? Eu daqui não lhe consigo chegar três ou quatro. E ele está mesmo a pedi-las, senhores!

quinta-feira, março 19, 2009

REMIXVILLE | Track#17

Brad Mehldau interpreta ao piano o tema Paranoid Android, dos RadioHead (outra vez estes!). Agora digam lá que o rock não tem a dignidade de um qualquer Chopin. Digam lá, vá, se são capazes.


Anti-Telejornal | Elogio do suicídio.

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


Álvaro de Campos

domingo, março 15, 2009



Circo Máximo: sou uma quadriga desembestada.
O piloto foi já cuspido, na poeira rolou ferido
e os cavalos correm soltos pela pista ensanguentada.

Sei que vou chegar primeiro desde a partida.
Ben-Hur que vá para o caralho: sigo por um atalho,
faço batota, sou o mau da fita mas ganho a corrida.